30 de novembro de 2018

Um cientista explica porque os bebês geneticamente modificados anunciados nesta semana são mais chocantes do que você imagina

No início desta semana, a comunidade científica entrou em polvorosa com o anúncio de um pesquisador chinês de que teria tido sucesso em criar bebês geneticamente modificados. As gêmeas Lulu e Nana tiveram seu código genético alterado com o objetivo de serem imunizadas contra o vírus HIV.

Em um artigo publicado no portal The Conversation, o professor de Sociologia John Evans, da Universidade da Califórnia em San Diego, que há duas décadas realiza pesquisas na área de edição genética humana, explica porque essa questão é mais complicada do que parece. Leia abaixo o artigo na íntegra:

De boas intenções, e melhoramento via edição de genes humanos, o inferno está cheio

Aparentemente, pesquisadores na China facilitaram o nascimento do primeiro “bebê personalizado” – bebês, na verdade, duas meninas gêmeas que seriam supostamente resistentes ao HIV. O cientista que criou os embriões, bem como alguns cientistas americanos como [o geneticista] George Church, da Universidade de Harvard, elogiaram a intenção benéfica de produzir uma criança resistente à doença. Quem poderia argumentar com boas intenções?

Mas, quando você pode fazer isso com um gene, você poderia, algum dia, fazê-lo com qualquer gene – como aqueles ligados a realização educacional. Aqueles que elogiam a pesquisa chinesa não deram quaisquer mecanismos, ou regras e regulamentos, que permitiriam a edição genética humana apenas para fins benéficos. Como diz o ditado: “De boas intenções, o inferno está cheio”.

Por mais de 20 anos eu foquei minha pesquisa em debates sobre edição genéticas humana e outras biotecnologias. Eu assisti esses debates se desenrolarem, mas estou chocado com a recente velocidade dos desenvolvimentos.

O cientista chinês, He Jiankui, afirmou que alterou embriões para sete casais durante tratamentos de fertilidade na China. Seu objetivo era desativar um gene que codifica uma proteína de entrada que permite que o vírus HIV entre em uma célula. Uma mulher gestou dois desses embriões e, neste mês, deu à luz a duas gêmeas não idênticas que seriam, de acordo com He, resistentes ao HIV.


Dado o sigilo envolvido, é difícil confirmar a declaração de He. A pesquisa não foi publicada em um periódico revisado por pares, os pais das gêmeas se recusaram a falar com a mídia e ninguém testou o DNA das garotas para verificar o que ele diz ser verdade. Porém, o que é mais importante, por enquanto, é que há cientistas tentando criar seres humanos aprimorados que poderiam transmitir esse traço à sua prole.

Linha dominante e reforma eugênica

Criar uma espécie humana “melhorada” têm sido o sonho de eugenistas há muito tempo. A “linha dominante”, a versão “old school” da eugenia, assumia que traços superiores eram encontrados em raças, etnias e, particularmente no Reino Unido, classes sociais específicas. Essa lógica culminou no Holocausto, em que os nazistas concluíram que alguns grupos étnicos são geneticamente superiores a outras e que os “inferiores” devem ser exterminados e completamente apagados.
A divulgação do Holocausto destruiu a eugenia da linha dominante, mas uma eugenia de “reforma” surgiu nos anos 1950. Essa variação da eugenia assumia que “traços superiores” poderiam ser encontrados entre todos os grupos étnicos. Tudo o que precisava acontecer era fazer com que essas pessoas superiores produzissem mais crianças e desencorajar a reprodução daqueles com traços inferiores. Isso acabou sendo difícil.

No entanto, no começo dos anos 1950, Francis Crick e James Watson descobriram a estrutura química do DNA, o que sugeria que os genes humanos poderiam ser melhorados por meio da modificação química das células reprodutivas. Uma resposta emblemática foi do proeminente biólogo Robert Sinsheimer, que escreveu em 1969 que as novas tecnologias genéticas da época permitiam “uma nova eugenia”. De acordo com Sinsheimer, a antiga eugenia exigia a seleção de indivíduos aptos para procriar e abater os inaptos. “A nova eugenia permitiria, em princípio, a conversão de todos os inaptos ao mais alto nível genético … pois deveríamos ter o potencial de criar novos genes e novas qualidades ainda não sonhadas”.


O debate ético moderno sobre a edição genética humana pode ser traçado até esta era. O debate foi implicitamente elaborado como uma ladeira escorregadia.

No topo da ladeira estava um ato de edição genética julgado como indiscutivelmente virtuoso – um passo que a maioria das pessoas estava disposta a tomar – como reparar a anemia falciforme. Contudo, a ladeira era escorregadia. É muito difícil dizer que mudar outros traços que não são fatais, como surdez, não são igualmente aceitáveis. Uma vez que você descubra como mudar um gene, você pode mudar qualquer um, independente da sua função. Se nós consertarmos a anemia falciforme, por que não a surdez, ou uma doença cardíaca de início tardio, ou a falta de uma inteligência “normal”, ou, à medida que nos aproximamos do final da ladeira, a falta de uma inteligência superior?

No final da ladeira estava o mundo distópico onde ninguém quer acabar. Isso é tipicamente descrito como uma sociedade baseada no controle genético total da prole, em que as vidas e as oportunidades das pessoas são determinadas pelo seu pedigree genético. Hoje o final da ladeira é representado pelo filme “Gattaca”, do final dos anos 1990.


Nos anos 1970, essencialmente todos os participantes do debate começaram a subir a ladeira e aprovaram a terapia gênica somática – uma estratégia para curar doenças genéticas nos corpos de pessoas vivas em que as mudanças genéticas não seriam passadas para qualquer descendente. Os participantes do debate ético sobre edição genética subiram nessa ladeira porque estavam confiantes de que tinha evitado qualquer deslize possível ao criar uma norma rígida contra a modificação de DNA que passasse para a próxima geração: a barreira da linha germinal. A linha germinal significa influenciar não apenas a pessoa modificada, mas também seus descendentes.

Mudanças somáticas poderiam ser debatidas, mas pesquisadores não poderiam ir além da barreira para mudar a herança genética da pessoa – mudando a espécie humana como os eugenistas desejam há tanto tempo. Outra barreira no caminho do inferno das boas intenções que acabou sendo permeável era aquela entre bloquear uma doença e melhorar um indivíduo. Cientistas poderiam tentar usar a edição genética humana para evitar doenças genéticas, como a anemia falciforme, mas não para criar humanos “melhorados”.

As ações recentes do cientista chinês saltam sobre as barreiras da linha germinal e do melhoramento. É o primeiro ato conhecido de edição de genes da linha germinal humana. Essas gêmeas podem passar sua nova resistência ao HIV para seus próprios filhos. As ações também não são para evitar uma doença genética como a anemia falciforme, mas para criar um humano melhorado, embora seja um aprimoramento feito em nome do combate a uma doença infecciosa.

Pedindo por uma nova barreira

Diferentemente dos primórdios do debate sobre a edição genética humana, não nos é dada nenhuma discussão de onde essas aplicações parariam. Aqueles que advogam o uso da edição genética pelo cientista chinês não apontam uma próxima barreira, mais abaixo, que pode ser usada para nos certificarmos que, ao permitir essa aplicação supostamente benéfica, nós não acabaremos eventualmente no final da ladeira. Muitos cientistas parecem pensar que uma barreira pode ser construída com aplicações a “doenças” na parte aceitável da ladeira e “melhoramento” na parte inaceitável, mais abaixo.

No entanto, a definição de doença é notadamente fluida, com companhias farmacêuticas frequentemente criando novas doenças a serem tratadas num processo que sociólogos chamam de medicalização. Além disso, a surdez é uma doença? Muitos surdos acham que não. Nós também não podemos simplesmente confiar que a profissão defina doenças, já que alguns médicos são engajados em atividades que são melhor descritas como melhoramento (cirurgia plástica, por exemplo). Um relatório recente da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos concluiu que a distinção entre doença e melhoramento é irremediavelmente confusa.

Assim, enquanto os cientistas que defendem o primeiro bebê melhorado podem estar corretos de que isso é um bem moral, ao contrário dos debatedores anteriores, eles não deram à sociedade barreiras que nos permitam caminhar com confiança nessa nova ladeira escorregadia. É só esquivar-se da responsabilidade dizer que “a sociedade decidirá o que fazer a seguir”, como fez He, ou dizer que a pesquisa “é justificável”, sem definir um limite, como fez George Church, da Universidade de Harvard.

Para um debate responsável, os participantes devem declarar não apenas sua conclusão sobre esse ato específico de aprimoramento, mas também onde irão construir uma barreira e, criticamente, como essa barreira será mantida no futuro.


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